Na galeria de doutrinadores da unidade europeia, sempre tendo por objetivo fundamental evitar a guerra civil das potências europeias, e a mais limitada galeria dos que foram dando corpo ao projeto da União que temos, a figura de Jacques Delors aparece frequentemente como um marco divisório de épocas. Não apenas pela ação governativa, com um saldo positivo minoritariamente contestado, mas também porque o envolvimento na ação não o impediu de se preocupar e ocupar, com atenção empenhada e lúcida, de definir e implantar na consciência dos povos chamados à unidade uma vontade de coesão.
Num dos valiosos trabalhos da European Federation of National Academies of Sciences and Humanities (ALLEA) incluído no volume (2006) intitulado "In Search of Common Values in the European Research Area", Jérome Vignon recorda como ele se interessou pelos programas de investigação das mudanças ou tendências que estavam a tornar-se dominantes nas sociedades múltiplas da União e que deveriam basear as políticas de integração a definir e seguir.
Isto por ter reconhecido que necessitava de atualizar a perceção dos órgãos responsáveis da União, em vista das diferenças de objetivos das novas gerações que já não tinham senão informação, mas não memória da experiência terrível que animara os primeiros responsáveis pelo projeto europeu.
A experiência aconselhou a orientar as consultas às correntes religiosas e humanistas abrangidas, informa o citado estudo, pela expressão "A soul for Europe", procurando, no encontro das ciências e da cultura, a variedade, a identificação da diversidade das perspetivas nacionais e, finalmente, ter seriamente em conta os trabalhos do European Group of Ethics, que muito deveu a Noêlle Lenieu.
Tudo numa data em que se multiplicavam as responsabilidades da União em todos os domínios do desenvolvimento e da informação, que levariam, na fórmula que se tornou famosa de Delors, a moldar a nova sociedade do futuro, que mal se definia mas se pressentia.
É de registar que deram fruto valioso os trabalhos da ALLEA, pelo menos na investigação, debate e definição dos valores comuns que devem presidir à sua área de investigação científica, de resto apoiando-se num longo passado que, com definição maleável de objetivos e métodos, era já rico de reconhecimentos mútuos, convívio, encontros e comunicações.
Mas são mais vastos os resultados que Delors procurou obter e sustentar, usando mais recursos ao seu dispor, na busca de uma alma europeia, que tanto o preocupou. As divergências que se aprofundam sobre qual é o conceito estratégico da União, em vésperas de parecer inevitável o confronto de orientações dos governos europeus em mudança, sobretudo no que toca ao comportamento da Alemanha e da França, não apontam para que a "alma da Europa" esteja presente e venerada como paradigma comum e dominante, antes parece mais inquietante a ameaça do regresso à busca das diferenças que no passado século fizeram naufragar todos os apelos, doutrinas e práticas para a unidade, deste conjunto de povos que habitam um território sem fronteiras naturais, que não falam a mesma língua, cuja história comum está semeada de lutas interiores, que, todavia, se proclamam todos europeus e ainda não perderam completamente o hábito de tratar os restantes povos com a simples expressão - os outros.
O fundador Jean Monnet, ao escrever as memórias, confessava que, se tivesse a experiência que entretanto se desenvolveu na Europa, teria começado pela cultura. A tentativa de Delors começa a parecer um restauro ameaçado de tardio, em vista do projeto e consequências das práticas das finanças e da teologia de mercado.
A alma da Europa não parece ter sido fortalecida, mas à debilitação da Europa não falham as contribuições. Destas inquietantes contribuições, as mais danosas não são as que derivam de divergências legítimas de opiniões sabidas e sustentadas nos órgãos institucionais: são, antes, as originadas por diretórios, ou ignorados ou não constantes de qualquer tratado.
Fonte: Diário de Noticias